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A Minha Almofada Tem Rádio - Podcast

sexta-feira, 4 de abril de 2008

. sexta-feira, 4 de abril de 2008

A MINHA ALMOFADA TEM RÁDIO #5
RÁDIO ZERO - DOMINGO - 10 HRS


Arrastámos o corpo até ao sotão munidos de um espanador mágico e, depois da poeirada assentar, surgiram velhos discos de capas psicadélicas...
Pink Floyd, King Crimson, Yes, Procul Harum, Jethro Tull, The Velvet Underground, Genesis, Bob Dylan e outros dinossauros mais ou menos fossilizados,relativamente progressivos, subtilmente sinfónicos.





E viajamos pelo delta em busca de um ou dois blues, daqueles que aquecem a alma e elevam o espírito.



Saudades?

Só se for dessa coisa grosseira que é uma grande bacalhauzada com grelos...
Como o aventureiro João sem Medo, "um pequeno burguês gabarola que se ilude de não parecer covarde", que vivia em Chora-Que-Logo-Bebes e um dia resolveu saltar o Muro e conhecer a Floresta Branca, uma espécie de Parque de Reserva de Entes Fantásticos.

José Gomes Ferreira, nascido na Rua das Musas da cidade do Porto, licenciado em Direito, poeta, ex-cônsul, ex-figurante de cinema é o autor deste panfleto mágico em forma de romance.

Romance publicado em Lisboa em 1963, na Colecção Contemporânea da Portugália Editora.

A 2ª e 3ª edições saíram em 1974, na mesma editora, com o subtítulo "panfleto mágico em forma de romance". As publicações posteriores ficaram a cargo das "Edições D. Quixote".

Na última parte da dedicatória que abre esta obra, afirma o autor que "As Aventuras Maravilhosas de João Sem Medo" são um "divertimento escrito por quem sempre sonhou conservar a criança bem viva no homem" (e o próprio autor dizia recusar-se a ter mais de 20 anos). "E poucos livros conseguiram operar de forma tão nítida este prodígio: foi escrito para a juventude, mas os chamados adultos identificaram-se plenamente com o universo mágico que ele encerra" - como diria anos mais tarde José Jorge Letria.

Mas aquilo que à primeira vista é apenas um "divertimento literário", serve também de panfleto irónico ao Portugal do Fascismo, com o seu atraso em relação ao resto do Mundo civilizado ("Os relógios não marcavam as horas, os minutos e os segundos, mas os séculos", como escreve o autor numa passagem da obra), os seus dramas - a falta de liberdade de expressão e representação, a alienação no plano político, a negação do indivíduo como actor-sujeito, a recusa da sua transcendência - e lutas quotidianas em tempo de repressão (metaforizado na aldeia "Chora-Que-Logo-Bebes", onde nasceu João, o protagonista da obra, e obsessivamente em muitos outros espaços. João, por exemplo, durante o seu percurso circular de saída e retorno à casa da aldeia, anda atento - com os olhos do corpo e os da alma - ao que o rodeia, enxergando um mundo diferente que o espanta, uma vez que é um mundo de regras diferentes e às avessas - a tristeza faz rir e a alegria chorar, anda-se de mão no chão e pés para cima, invoca-se o "Diabo das Alturas", etc -, onde tudo se transforma, e em cujo processo transformativo nem o próprio João escapa. A situação psicológica do espanto é partilhada pelo autor, face ao seu próprio mundo).

João Sem Medo é um dos sujeitos irónicos da obra, ironizando sobre tudo o que lhe acontece, inclusivamente mostrando saber que está vivendo dentro de um determinado modelo narrativo (a certa altura, por exemplo, pensa que haverá de agir "como todos os heróis de contos populares nas circunstâncias em que me encontro". Dirige-se também ao narrador como uma personagem plurificada: "Não me digam que aqueles cabeças de vento se esqueceram da luzinha para me guiar. E agora? O que hei-de fazer ao raio da vida sem a luzinha?"

Esta e outras personagens parecem ser leitoras delas próprias, analisadoras e críticas do narrador que as conta, e quase interpretadoras do próprio autor, que paga com a mesma moeda da ironia, a ironia de que é alvo por parte das personagens). Depois da sua viagem (e nomeadamente depois de passar pelo "Vale das Experiências"), João Sem Medo parece ter descoberto a verdade em si, e pretende regressar à sua aldeia natal como um Messias ou D. Quixote (capaz de todos os "golpes de Estado"). Mas o que é certo é que não consegue assumir-se como mais do que um "agente-desalienante" (aprisionado dentro de um sonho), tal como José Gomes Ferreira não conseguiu ser mais do que um combatente cuja luta só se poderia concretizar no plano dos "Projectos". A crítica de Alexandre Pinheiro Torres a esta obra (in "Vida e Obra de José Gomes Ferreira), é clara e deixa praticamente tudo dito àcerca dela : “Livro sem qualquer paralelo na literatura europeia de hoje, ganha no confronto em relação a outras célebres alegorias políticas (...)”

Naturalmente, este programa sabe melhor se for ouvido...com a cabeça na almofada!






“― Bem – pensou. ― Cá estão os dois caminhos fatais: o do Bem e o do Mal. (Como se houvesse caminhos nítidos do Bem e do Mal!) Já esperava por eles. Agora, para completar a comédia, falta apenas a respectiva fada… Uma fada a valer, de varinha de condão, que regule o trânsito à laia de polícia sinaleiro. Lá sem fada é que eu não passo.
E pôs-se de novo aos gritos de troça:
― Eh! Fada dos bosques! Aparece, rica fada da minh’alma.
Então ― ó pasmo dos pasmos! ― João Sem Medo viu sair da espessura da floresta um ser prodigioso que de longe parecia uma mulher jovem e bela, cabelo loiro até à cintura, três estrelas de prata na testa, varinha na mão direita, roca na mão esquerda, túnica bordada de rubis e esmeraldas, chapinsdellatina e tudo o mais que as fadas costumam usar nos bailes de Entrudo.
No primeiro momento contemplou-a, deslumbrado. Mas, à medida que a observava mais de perto, o sorriso inicial desfez-se pouco a pouco em caretas de desconfiança.
― És a Fada dos Dois Caminhos? – inquiriu, duvidoso. ― Palavra? Mostra cá o bilhete de identidade.
― Não acreditas? – protestou, para desviar a conversa, a hipotética fada com voz aflautada, voz de máscara aos guinchos. ― Sim, sou a Fada Infalível, a Fada Lugar-Comum…
― Acredito, acredito… – concordou o rapaz por zombaria complacente.
E insistiu em examiná-la, com manifesta vontade de rir. E com razão. Pois a pseudo fada parecia… Parecia, não. Era… Era mesmo um homem vestido de mulher, como se deduzia no desarrumo da cabeleira postiça à banda, no negror evidente da barba mal disfarçada por várias camadas de pó-de-arroz, além da maneira canhestra e hirta de andar e da falta daqueles mil e um ademanes femininos tão difíceis de imitar pelos homens. O jeito de pentear os cabelos com os dedos, por exemplo.
Embora não desejasse humilhá-lo, João Sem Medo não evitou um incondescendente riso de chacota.
― Que queres, filho? – explicou a fada falsificada, vexadíssima, a tropeçar na túnica. ― Quando telefonaram para a Repartição da 3ª Mágica a requisitar uma funcionária, só me encontrava lá eu, que sou contínuo, e uma fada já muito velhinha, muito perra, entrevada de reumatismo e com mais de 50 000 anos de serviço activo, quase na idade da reforma por inteiro, coitadinha! E então, por uma questão de prestígio, ofereci-me para esta fantochada. Nem quero pensar no que diria o Mago-Mor se não mandássemos uma fada válida para os Dois Caminhos. Pregava-nos uma descompostura tremenda. Foi por isso que me mascarei e vim… Não julgues, porém, que não percebo de artes mágicas! “

excerto de As aventuras de João Sem Medo de José Gomes Ferreira

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